01 outubro 2007

Ignorável

João acordou naquele dia disposto a mudar a vida. Jurou na noite anterior que tudo seria diferente. Impôs a si próprio uma reviravolta no que o rodeava. Tudo ia ser diferente a partir daquele momento.

Levantou-se da cama, fez o seu próprio café, vestiu-se e saiu.

Optou por andar a pé, deambulou pela cidade como os outros milhares que seguiam, submersos em pensamentos e pressas, ao seu lado pela rua a cima. Seu ombro chocou com todos que não se desviaram do seu caminho.

Chegou ao trabalho atrasado em meia hora. Dirigiu-se ao gabinete do chefe, deu um murro na mesa e demitiu-se.

Na saída, agarrou numa colega de trabalho, musa dos seus sonhos eróticos, e espetou-lhe um beijo tão profundo que lhe podia sentir as entranhas. Teve ainda tempo para acertar um pêro no graxista que lhe infernizava a vida no escritório.

Saiu disparado pela rua aos encontrões nos transeuntes, caminhou um pouco sem destino, procurando coisas que podia fazer de diferente. Pensou em dançar nu na fonte luminosa mais próxima, ou talvez ajudar velhinhas a atravessar ruas mesmo quando o sinal ficasse vermelho para os peões, ou quem sabe assaltar a agência bancária mais próxima. Tudo isso pensava já não ser tão invulgar. Queria fazer algo que aparecesse e permanecesse na televisão por algum tempo.

Foi em direcção à assembleia da república.

Lá chegou em pouco tempo e esperou até a sessão ter início. Às primeiras palavras do presidente da assembleia começou a insultar os políticos e suas acções. Relembrou os cortes salariais, o deficit, as promessas não cumpridas, a guerra, o ódio racial, os boatos e artimanhas, os conluios. Mandou tudo e todos à merda, virou costas, acompanhado por uma escolta policial, e saiu.

Foi preso e presente ao juiz de instrução. Perante a eminência, foi perguntado sobre seus actos e meteu-se numa verborreia quase infinita sobre a justiça nacional. Acusou o estado, os juristas, todo o sistema de incompetência, de negligência, de desnorte. Acusou os juízes, inclusive o que estava à sua frente, de incapacidade, de indiferença e foi condenado por desobediência e desrespeito a autoridade.

Foi enviado a uma consulta com um psiquiatra para que se pudesse avaliar da sua sanidade. Chegou à consulta e gargalhou, achou ridículo o aparato, achou caricata toda a preocupação. Disse que não estava louco, mas que tinha aberto os olhos e que queria dizer e fazer o que quisesse sem imposições e sem travões. Queria experimentar a liberdade no seu estado mais puro, liberdade para se exprimir a 100% e se isso fosse crime, então que o condenassem.

Assim o fizeram.

Chegando à prisão foi confrontado com os seus crimes e com os dos outros que o rodeavam. Foi apresentado aos chefes do presídio, legais e ilegais, e jurou (com os dedos cruzados) obediência a todos. Apanhou todos os dias, foi ao inferno e voltou várias vezes. Foi libertado pouco depois por um conjunto de factores que incluíam bom comportamento, amnistia do presidente e alterações extraordinárias do código penal. Riu incoersivelmente por mais uma estupidez da sociedade, mais um erro incompreensível. E foi-se.

Ao voltar às ruas reparou que nada havia mudado. Os mesmos “robots” matinais, os mesmos defeitos, vícios e equívocos. Nada do que tinha feito fez alguma diferença. Lembrou-se do ditado “uma andorinha só não faz verão” e abateu-se.

Chegou à casa, tomou um banho demorado, mandou tudo às favas e preparou-se para se matar. Agarrou no primeiro objecto minimamente ameaçador que encontrou e escolheu um alvo no seu próprio corpo.

O coração preparou-se para parar. Bateu pela última vez já passava das duas da manhã. Ninguém ouviu nada, ninguém se preocupou. Tudo aconteceu como se nada tivesse sequer acontecido. Ninguém se importou. Ninguém chorou. João estava esquecido. Apagado. Tudo o que fez, tudo que disse, nada ficou escrito na história. Nenhuma tinta foi gasta com suas aventuras.

João passou e não deixou saudade.


( E estou de bom humor hoje)

4 comentários:

Rain disse...

Posso dedicar a última linha à prof de Estatística dada a conversa de ontem?...

Catsone disse...

Faça o favor, minha cara chuva!

Balhau disse...

Muito bom! Mas la no fundo acredito que a verdadeira razão pela súbita liberdade se prenda por excessivos copos de licor beirão..

Catsone disse...

Aqui não se bebe licor beirão. Mas se for uma boa vinhaça...