09 junho 2013

Drogas de/vidas

Vinha ela dos médicos. 
Mais uma vez carregada de receitas milagrosas para mazelas e mágoas incuráveis.
Adentrou titubeante na pequena e velha botica. Cumprimentou o funcionário e apresentou-lhe a prescrição da dermatologista.
O farmacêutico sorriu e sussurrou entredentes "um manipulado? Até que enfim", numa clara alusão da necessidade pessoal de relembrar o labor num laboratório. Já ninguém praticava "pharmácia" nestes dias, vinha tudo em caixinhas coloridas.
Ela ouviu o rumorejo e respondeu num semelhante murmúrio: "manipulai-me!"

"Manipulai meu ser. Faz dele o que quiserdes. Revirai meu corpo, penetrai-o, perfurai-o, remexei-o, centrifugai-o em rotações tamanhas capazes de desfazer meus pensamentos mais sombrios. Triturai meus ingredientes e, assim, transformai-me em cura para meus próprios males.
Manipulai meu coração. Misturai os sentimentos que lá guardo em coquetel mágico de prazer. Manipulai a bomba e programai-a para estoirar como nos filmes: exactamente no momento em que me salvais e me pondes no porto seguro dos vossos carnudos braços.
Manipulai meus sofrimentos. Aquecei-os, queimai-os, fazei-os evaporar na química dos vossos preparos. Curai-me das minhas extraordinárias dores, das inventadas, das sonhadas, das queridas e companheiras, das físicas e das psíquicas. Curai-me por completo com os vossos salgados elixires místicos.
Manipulai o meu género. Manipulai-o com vigor. Manipulai-o com o rigor e precisão das ciências exactas. Não lhe tenhais perdão. Devassai-o, sugai-o, e deleiteai-vos com os seus sucos e provai que o inferno também pode ser sagrado. Usa o vosso corpo para o vasculhar meu sexo num vai e vem insaciável e pecaminoso. Fazei da minha pélvis um brinquedo e sê criança o tempo que quiserdes. 
Manipulai o que quiserdes de mim. Fazei-me vossa sem pruridos ou arrependimentos. 
Relembrai-me que a vida, por mais sofrida, pode, por fim, ter algum mínimo sentido."

O técnico voltou-se para ela com a nítida noção de ter ouvido algo e lhe perguntou:
"Desculpe, minha senhora, disse alguma coisa?"
"Oh, sim, sim. Era mais esta receita.", respondeu trêmula.
O farmacêutico olhou para o papel e falou consigo próprio:
"Hum, pois bem... sim... lítio".

2 comentários:

Anónimo disse...

BOM!!!!!!

Catsone disse...

Vindo de quem vem tomo como grande elogio. :D